Por Beatriz Lima Ribeiro
Doutoranda em Antropologia. Indiana University- Bloomington
Encontros na encruzilhada...
Há 3 anos comecei a me interessar por plantas e jardinagem. Refletindo sobre esse momento agora, no presente, percebo que elas se transformaram em novas amigas, numa “rede de apoio” diante de momentos de intenso estresse que vivenciei durante o primeiro ano do mestrado no Brasil. Não estou mais no meu país, e completo 6 meses na “gringa”, mas as plantas continuam sendo um elemento importante para o meu bem estar. Tenho orgulho de dizer que já tenho mais de dez plantas em minha nova casa e a dedicação a elas me mantém, creio eu, centrada em minhas raízes. Ao chegar em Bloomington, sabendo da minha paixão por plantas, meu amigo Jonathan comentou comigo: “Tem um brasileiro no Hilltop Garden”, e por fim o acabei conhecendo através da disciplina Food and the Body, ministrada pela professora Keitlyn Alcantara, também idealizadora do projeto Healing Garden (Para mais informações ver: https://www.healinggardeniub.com/post/in-search-of-wholeness-how-the-healing-garden-began).
Na nossa aula com André, caminhamos pela estufa do Hilltop, cheia de plantas familiares para mim como a árvore de pitanga, a caninha do brejo, a taioba e o capim santo. Todas prosperando, bem cuidadas por André.
À medida que a turma caminhava pela estufa, ele nos dava pedaços de folhas, cascos e madeira para cheirar, tocar e perceber as peculiaridades de cada uma. Ao longo desse caminho, não somente descrevia as propriedades medicinais, mas também ensinava como prepará-las: um chá quente com água borbulhando, outras com temperatura média, e outras mais que em seu estado cru também curavam machucados ou irritações.
Nesse primeiro verão do projeto Healing Garden, eu e Keitlyn conversamos sobre a importância de destacar o trabalho do André, que abriu o caminho para que esse projeto existisse. Mais do que isso, diversificar o que já foi escrito sobre seu trabalho, acessando outras comunidades em Bloomington, Indiana, através de um post escrito em Português. Quando inicialmente conversei com André sobre a escrita desse post, disse: "Bora conversar um pouquinho na nossa língua!" Rimos os dois, concordando sobre a falta que faz...
Assim, André me deu a confiança de compartilhar um pouco de sua história, conhecimento e filosofia sobre o cuidado com as plantas e como elas têm um poder transformador da comunidade.
Conhecimento, troca e cura
André chegou aos Estados Unidos em 2007, após estudar e se especializar no Brasil, para além do que aprendeu com sua avó. Desde cedo trabalhou para ajudar nas despesas da família, atuando na construção civil e posteriormente alistando-se no exército. Foi após esse período que se especializou em jardinagem e gestão paisagística. Veio parar em Bloomington, Indiana, após alguns anos morando em Chicago. Já trabalhando com paisagismo e jardinagem na cidade, André começou a prestar trabalho voluntário no Hilltop Garden, jardim da Indiana University na ativa desde a década de 1940. Segundo ele, o espaço estava praticamente abandonado, com mato alto e os jardins sem forma. Se um dia, caro leitor(a), você passar pelo Hilltop, muito do que lá está foi feito ou melhorado pelo André, como a estrutura do jardim japonês, as macieiras já há 3 anos dando fruta, o jardim ao redor da cerca, as calçadas no terreno e, claro, o espaço onde hoje está o Healing Garden. Lea, supervisora do Hilltop durante o tempo que André também trabalhou no espaço, destaca a singularidade dele no trato do jardim, indo além de só uma relação profissional com o Hilltop, mas tornando-se parte dele:
“Todos que tiveram contato com o André conseguiram ver a singularidade, cuidado e carinho que trouxe ao jardim. André acha pedaços de madeira, que a gente considera lixo, e os transforma em algo único, trouxe personalidade ao espaço. A manutenção que ele fazia não considerava só parte de seu trabalho, mas também trazia seus valores para o Hilltop na relação com a natureza”.
O seu talento no trato com plantas vem desde a infância, influenciado por sua avó, uma figura central da comunidade na Ilha de Itaparica, Bahia. Esse conhecimento é ancestral, passado de geração em geração através da avó de sua avó: mulher parte da diáspora africana, que forçadamente veio ao Brasil vendida ao regime escravista, e que posteriormente se abriga na Ilha. Uma história que soa comum aos ouvidos, sendo o Brasil no último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888, e que hoje tem mais da metade de sua população constituida por pessoas negras.
André fala com orgulho e respeito de sua ancestralidade. Nas nossas conversas, ele me descreveu o “cenário” de suas aulas com a avó na Ilha:
“Ela me levava pra andar no meio do mato, e ia me mostrando o nome de cada planta, eu bem pequeno segurando na barra da saia dela”.
Mais que identificar as plantas, André sempre aponta os seus aspectos medicinais, e claro de cura, no trato de diferentes enfermidades. Essa perspectiva também é herança de sua avó, que além de figura de liderança na ilha, era também curandeira, parteira e mãe de santo. Segundo ele, ela era uma figura que as pessoas viam como de sabedoria e iam a ela para pedir conselhos. Desde de criança curioso, André me contou que muito do que aprendeu sobre não só as plantas, mas seu aspecto espiritual, social, e como ajudar as pessoas veio de sempre se interessar pelo talento de sua avó.
Na medida que seu conhecimento atraiu a curiosidade de muitos ao vir para os Estados Unidos, voluntários se apresentavam no Hilltop para auxílio na manutenção do espaço do jardim, ou também para ter um pequeno espaço para plantio. Durante os aproximadamente 10 anos que ele lá trabalhou, André sempre ajudou e compartilhou o que sabe com os voluntários ao longo dos anos, em todos os processos de cuidados das plantas. Desde a produção do composto, à germinação, até o plantio e a colheita.
Ele tem uma visão muito clara sobre o seu papel dentro do jardim e o lugar que os voluntários ocupavam: uma construção de comunidade. Comunidade é comunhão, é troca e auxílio mútuo em busca de um objetivo em comum:
“Se eu tenho meu jardim e você tem o seu, e um dia você não pode vir regar suas plantas, quando eu for regar a minha, eu águo a sua. Quando eu não puder vir aguar meu jardim, você água o seu e o meu. Isso é comunidade”.
Essa não é sua terra, como um dia ele me disse, mas quis buscar uma forma de conectar pessoas. No jardim, não faz sentido para ele cada um ter o seu espaço e só se preocupar com seu pedacinho individual, o importante é a noção de comunidade como um todo, de respeito e cuidado por um lugar que todos usufruem.
Nisso, André também criou outras atividades dentro no Hilltop, como manhãs de meditação, e dias na cozinha, em que preparava diferentes pratos em conjunto com todos. Isso faz parte de sua visão de comunidade, sendo também uma forma de rememorar momentos na Ilha de quando era criança. Ia com sua avó, todo sábado, ajudar na construção de casas de barro para outras pessoas da comunidade, um trabalho que reunia desde as mais pequenas crianças, até o adulto mais idoso. Ao fim desse trabalho em que todos se auxiliavam, tinha sempre boa comida, o som do tambor, a dança e as risadas em grupo. Nunca cada um por si, mas sempre em troca mútua e comunitária. Lea também destacou esse aspecto de seu trabalho no Hilltop:
“André sempre foi muito atencioso com todos que apareciam lá para voluntariar. Ele presta atenção nas necessidades e interesses das pessoas e fazia algo único para elas. Às vezes um buquê, outras vezes legumes e ervas que ele havia plantado.”
Ouvir, olhar, sentir e respeitar
É também a partir dessa perspectiva, que a criação de comunidade pressupõe troca de energia, não só entre as pessoas que trabalham em torno de um objetivo em comum, mas entre as plantas, a terra, as árvores e os animais. André sempre atenta para a importância de um ouvir sem pressa, de um olhar observador e a paciência de compreender o processo de cada ser vivo. Isso se reflete no modo como pensa o ciclo de receber o que a terra nos dá, e ter respeito pela sua generosidade. Ele conta que toda vez que vai plantar, uma parte do plantio vai para a energia da terra, como alimento em retribuição para esta que nos alimenta.
“O que eu vejo, observo muito, é que não há retribuição para a terra. Ela só dá e dá e muita gente não está preocupada com o que precisa dar em retorno. Nos últimos anos eu percebo cada vez menos borboletas no jardim, menos insetos entre as árvores. O pessoal planta, usa tóxico e colhe tudo, tira tudo da terra, mata os insetos. Na próxima colheita, a mesma coisa. Todos os nutrientes vão embora, assim como a energia”.
Um dos planos de André a longo prazo é voltar ao Brasil e continuar compartilhando sua visão de comunidade. Lá, ele quer construir uma estufa e ensinar uma forma de plantio auto sustentável, onde a população possa ter mais independência e variedade na sua dieta. Pensando principalmente na escola municipal da Ilha, ele imagina realizar um projeto interdisciplinar e proporcionar um diverso acesso de verduras, legumes e ervas às crianças e famílias de baixa renda em Itaparica.
Entre os dias de nossas conversas, acabei refletindo muito sobre o que significa essa perspectiva de mundo. É uma negação a uma visão exploratória da natureza, em que tudo se encontra fragmentado e individualizado. Não só relacionado ao respeito aos ciclos, e o reconhecimento da energia vital presente na terra, é também uma tentativa de reconexão entre pessoas e a percepção de igualdade entre elas e os elementos da natureza. O ouvir e olhar atento, vem acionado com o respeito a essa energia vital que nos conecta. Um respeito de igual para igual. André um dia me disse:
“Eu adoro fazer trilha, eu paro e escuto. Abraço às árvores, converso com elas, é também uma forma de meditação”.
Também me recordei de um dos conceitos de Antônio Bispo - ou Nego Bispo -, autor e intelectual quilombola, na sua discussão sobre perspectivas anti-coloniais do trato da natureza. Sua ideia de “biointeração” (Bispo 2015) se conecta com a filosofia de André: uma reflexão sobre a conexão entre comunidade e meio ambiente. Há uma relação de interdependência, para além de uma visão utilitarista de propriedade sobre a terra. É a percepção de uma existência conjunta e em comunhão.
Acredito que o trabalho de André no jardim também busca superar as dicotomias do que é ser um homem negro brasileiro num país (EUA) onde o “white settlement” dita a relação com a terra e a branquitude é elevada ao patamar do ideal: a luta entre um pensamento desterritorializado e sem raízes versus um pensamento territorializado enraizado na memória, entre colonização versus contra-colonização (Bispo, 2015). Na minha visão, André traz a essas terras gringas a possibilidade de enxergar o poder comunitário e enraizado, e contrário à individualização e expropriação da natureza como um elemento externo ao ser humano. Nas suas palavras, é se abrir para compreender a energia generosa da terra e a beleza que é construir comunidade.
Conhecê-lo também me fez apreciar a maravilha que é perceber as coincidências da vida e o aprendizado conjunto quando longe de casa...
Referência
Antônio Bispo dos Santos. 2015. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília, INCTI, Universidade de Brasília.
Learning with others, appreciating the mother nature, healing ourselves, and building friendships!
I feel extremely touched with these words since my pass through the Hiltop Garden at IU cannot be better described as the presentation and reflection you've shared with us, Beatriz. I was walking in the East side of campus one morning, missing so many aspects of my life, my family, and my country. Then, a man that was walking with a dog nearby told me "There is a garden there that you can visit if you need a new place, and there is a guy from Brazil in charge, his name is André. He is very good guy and you can work or ask him about the place".…